Sombra de Vitória / Daniela Torrente
Os fotógrafos do século XIX, devido ao longo tempo de exposição necessário para a realização de uma
fotografia, para garantirem retratos nítidos, eram obrigados a recorrer a dispositivos que imobilizavam
seus retratados, como pedestais e pinças. Estes recursos, porém, não funcionavam com crianças. No caso
de retratos infantis o fotógrafo, geralmente, recorria a mãe, que, coberta por tecidos dos mais diversos
tipos, segurava e acalmava a criança. A necessidade de resolver um problema prático criou,
involuntariamente, a imagem evocativa de uma mãe apagada ou reduzida a um suporte de sua prole.
Uma das ferramentas que artistas se utilizam é a criação de imagens que dialogam com imagens históricas.
Com a possibilidade de olhar para o passado e para o contexto em que uma imagem vernacular foi criada,
atualizam sua visualidade propondo uma nova percepção tanto do passado quanto do presente. O que era
um comportamento cotidiano comum, pode ser visto, agora, como representativo de padrão social que se
consolidou.
É a partir desta ideia que Daniela Torrente criou o conjunto de imagens de Sombra de Vitória, título que faz
referência a Era Vitoriana na Inglaterra (1837-1901), período onde as fotografias hidden mother (mãe
oculta ou escondida) foram feitas e no qual se consolidou o modelo de família nuclear burguesa.
Uma sociedade é construída sobre uma infinidade de trabalhos e tarefas. Alimentos e objetos são
produzidos, serviços prestados, casas cuidadas e filhos criados. Estes dois últimos tipos de trabalhos são,
historicamente, considerados vocação e obrigação das mulheres, e, enquanto todos os outros trabalhos
são remunerados, considerados sem valor monetário.
A filósofa italiana Silvia Federici aponta em seu livro “Calibã e a bruxa” que foram extremamente
importantes para a acumulação primitiva do capitalismo os seguintes fenômenos: o desenvolvimento de
uma nova divisão sexual do trabalho; a construção de uma nova ordem patriarcal, baseada na exclusão das
mulheres do trabalho assalariado e em sua subordinação aos homens; a mecanização do corpo proletário e
sua transformação, no caso das mulheres, em uma máquina de produção de novos trabalhadores.
Foi para questionar como, ainda hoje, funciona a estrutura familiar na maioria dos lares do Brasil, que
Daniela convidou, através das redes sociais, mulheres de São Paulo a participarem de seu projeto. Mais do
que quererem expressar situações específicas de suas vidas, essas mulheres se uniram ao projeto para
mostrar que, mesmo que a sociedade tenha se transformado nas ultimas décadas, muito ainda há que ser
feito para que exista uma verdadeira equidade entre homens e mulheres. Especialmente no que se
relaciona às responsabilidades domésticas – que sobrecarregam de forma desproporcional a vida das
mulheres, visto que muitas realizam uma jornada dupla de trabalho –, é preciso retirar o pano que
invisibiliza a desigualdade.
André Penteado (Acompanhamento curatorial)